MEMÓRIAS DA UMBANDA

 

Diamantino Fernandes Trindade
 Joaquim Mendes Furtado
O Semanário, n. 94, 23 de janeiro de 1958

 

Excelentíssimo Sr. Dom Vicente Scherer – DD. Arcebispo Metropolitano – Nesta capital – Está em minhas mãos a edição do Correio do Povo, de 24 de agosto de 1957, onde V. Reverendíssima, concede uma entrevista, protestando contra o ato da Colenda (digna de respeito) Câmara de Vereadores de Porto Alegre, fazendo justiça em votar pela doação de um terreno, destinado a construção de um hospital de caridade aos umbandistas.

  1. Eminência diz que a Igreja, propriamente falando não combate a Umbanda. Proclama constantemente a irredutível oposição entre a religião católica e o conjunto de teorias práticas, conhecidas sob o nome de Umbanda ou Lei de Umbanda. Seus adeptos negam numerosos pontos essenciais da doutrina católica. Impossível por isso ser ao mesmo tempo católico coerente e umbandista convicto. Alertamos os católicos e homens de boa vontade, em defesa de fé sobre a contradição do binômio: Católico-Umbandista. A Umbanda promove a paganização e, por isso, o aniquilamento do cristianismo. Nossa palavra, pois, não se dirige aos discípulos e devotos dos Pais de Santo e Babalaôs. Mostramos aos católicos que está errado, é contra os princípios básicos da Lei de Deus o que a Umbanda ensina e faz. Ou católico ou umbandista: as duas coisas não é possível. A Umbanda distingue pela pretensa evocação dos espíritos e pelo culto do demônio, que chamam de Exu. Os perigos das práticas umbandistas. No terreno da terapêutica, coincidem com os efeitos deploráveis do charlatanismo e do curandeirismo.

Vossa entrevista é longa e muito bem escrita. Usando V. Excelência dos recursos da vossa inteligência e do alto cargo de Príncipe da Igreja Católica Romana. Entretanto, mesmo conhecendo meu medíocre grau de cultura, venho retruca-lo, tirando a minha lasquinha em defesa da minha muito querida Umbanda. Não como o fizeram os seus mestres Bettiol, Hervé e Moab. Estes são expoentes e figuras de elevados conhecimentos umbandistas, que respondem as coisas com linguagem cativante e objetiva. Eu, pobre coitado, posso é me vangloriar de possuir coragem e muita fé, graça a Oxalá.

Primeiramente, devo dizer a V. Excelência, que sou um filho de Ogum e, convicto devoto de Jesus e de Nossa Senhora, Sua Mãe amantíssima, que nós umbandistas chamamos de Mãe Iemanjá.

Ficamos honrados ao saber que a Igreja propriamente falando não combate a Umbanda. Lendo a referida frase, fiquei um tanto confuso. Creio que não entendi bem o seu sentido, porque no prosseguir da entrevista V. Excelência passou às considerações, já do conhecimento de todos, verberando as mais absurdas e desencontradas atitudes contra a Umbanda, seus adeptos e, até mesmo aos próprios católicos.

Das considerações referendadas pelo Eminente Príncipe da Igreja, tirei sábias advertências, que agradeço penhorado. Entretanto, sou obrigado a discordar sobre vários pontos, que consideramos irrisórios quando proferidos por um nobre da estirpe de V. Excelência.

De fato, agora estou sentindo – pelo efeito de vossas palavras – que a Umbanda está incomodando o clero, fazendo V. Excelência descer do seu trono de ouro, para vir de público puxar as orelhas dos seus fiéis, os quais são católicos e umbandistas ao mesmo tempo. Isto é um absurdo, não é mesmo? Sabeis que São Jorge é Ogum? Se vós ignorais, eu vos ensinarei que São Jorge é Ogum e, Ogum é guerreiro. Estou dizendo isso a V. Excelência, porque conhecendo algo sobre as guerras, estou notando que as vossas ordens dadas aos vossos comandados, não surtiram o efeito determinado, tendo em vista a necessidade de vir o próprio General para o campo de batalha. Quer isto dizer que a Umbanda está forte mesmo, graças ao Pai.

Referindo-se ao binômio (católico e umbandista), creio que nenhuma culpa aos umbandistas. No meu entender, é um negócio como outro qualquer. Sempre visitamos uma casa onde somos bem recebidos. Onde visitantes e visitados desconhecem a exploração. De eras passadas ouvíamos dizer que a voz do povo é a voz de Deus. Se os Templos de Umbanda estão superlotados de irmãos e, os dos católicos desolados, V. Excelência acha que nós umbandistas somos os responsáveis por isso?

Cremos que o povo é livre, podendo escolher, a seu bel prazer, o que melhor lhe parece. Nos templos de Umbanda, há um conjunto harmonioso entre os “cavalos” e as Entidades, em uma corrente de vibração tão superior, tão eloquente, que está muito longe da concepção de indivíduos de ideias fixas para limitados pontos.

As Entidades guerreiras e Pretos Velhos, aconselham, dão passes e receitam ervas, fazem benzeduras, defumam doentes, afugentando os maus espíritos. V. Excelência não acha que aquelas três colherinhas com incenso queimado no turíbulo, nas Igrejas não significam algo de magia? Não estão por acaso afugentando também os maus espíritos? Os nossos médiuns ou “cavalos” são submetidos a um rigoroso preparo. São cruzados nas Sete Linhas da Umbanda. Na Igreja, também há preparo e cruzamento, não é verdade? Não faz muito tempo, tive a oportunidade de assistir à consagração de três sacerdotes. Naquela cerimônia eu vi muito mais de magia do que a usada na Umbanda. No ato da consagração a criatura se põe de bruços, ora com os braços estendidos no prolongamento do corpo, ora com os braços abertos em sinal da cruz. A magia se prolonga por muito tempo, em uma belíssima cerimônia.

A Umbanda tem nos dado revelações maravilhosas e, bem assim, conseguido respostas objetivas sobre muitos dos chamados mistérios da Igreja Católica. Na Umbanda não há esconderijo. Suas portas estão sempre abertas aos amigos e aos curiosos, não havendo exploração de espécie alguma. O ódio que a Igreja devota à Umbanda, não se justifica, porque Ela não entra nos nossos Templos para ver, realmente, nosso cerimonial, tanto do lado religioso como financeiro.

Na Sociedade Espírita Cavaleiros de São Jorge, sita à Rua Vicente de Fontoura, 1405 (sede própria), onde fui agraciado com o cargo de Assistente do Diretor Espiritual, temos ritual dentro da Linha Branca de Umbanda, pura e simples.

Convido V. Eminência o Senhor Arcebispo Metropolitano, para nos honrar em visitar nossas Tendas de Umbanda. Tenho certeza que Sua Excelência mudará o conceito, a respeito. O Sr. Capitão Elio Castro, DD. Presidente da União de Umbanda do Rio Grande do Sul, mais diretamente ligado às nossas atividades, poderá fornecer ao Clero, uma relação das Tendas de Umbanda registradas na União.

A Igreja nos honrando com a sua visita, ficará surpreendida com a nossa evangelização. A adoração a Jesus e a Nossa Mãe Santíssima (Iemanjá), pode servir de exemplo a outras religiões. Na Umbanda Branca, não há fanatismo. Obedecemos à lei da dignidade humana e da fraternidade universal. “Todos por um e um por todos”. Não distinguimos credos e raças. Todos são nossos irmãos e, como tal, devem ser tratados.

Os umbandistas não descuram de sua de sua evangelização. Todas as terças feiras, frequentamos um curso de doutrinação e evangelização, instalado na Tenda Espírita Nossa Senhora da Conceição, sita à Rua Avaí, 221, gentilmente cedida à União.

Não ignoramos que o Clero está se preparando intensivamente para a grande batalha contra a Umbanda. Esta atitude não é motivo de surpresa para nós. A Igreja combate sistematicamente todas as religiões que aparecem para lhe fazer sombra. Entretanto, até o presente momento, não tive conhecimento de uma só vitória concreta.

Isto porque, os meios empregados são traiçoeiros e vergonhosos, usando subterfúgios de todas as espécies, mentindo descaradamente sobre um assunto que ignora completamente. O Clero não conhece a Umbanda. Por conseguinte, não pode apreciá-la como o faz pela imprensa lida e falada. Nós umbandistas conhecemos o rastro do fogo que ela deixou através dos séculos para conseguir a maior fortuna do mundo.

Reconheço que a Igreja é uma potencia bem organizada. Também pudera, quase vinte séculos!

Uma religião estrangeira deve reconhecer o seu lugar. Estou de acordo que tenha suas ramificações em todo o Universo. O que me deixa admirado, é o direito que julga ter de se intrometer em assuntos onde não é chamada. Muitas vezes, o excesso de autoridade é prejudicial. Não faz muito tempo, no vizinho país do Prata, a Igreja passou por maus bocados. Aqui no Brasil isto não vai acontecer, porque o brasileiro sempre houve por bem conhecer democraticamente, os meios de combater os elementos desafetos. Os umbandistas conhecem muito bem a ação dos representantes da Igreja. Entretanto, a dignidade, a educação social e cristã, lhes impede procurarem a confusão no campo dos ideais dos outros. Isto porque vivemos a nossa vida na prática da verdadeira doutrina de Jesus.

Outras religiões estariam fazendo o mesmo? Desejo esclarecer a V. Excelência, que não somos assustados, e que a nossa maior idade, umbandísticamente falando, está se aproximando muito mais rapidamente do que imaginávamos.

Na vossa entrevista estais fazendo uma advertência sobre um ponto de alta relevância. Diz o seguinte: “Grande parte e mesmo a maioria das doenças, na ideologia umbandista, provém da influencia de espíritos maléficos e trevosos, que agem sobre o enfermo, ou são causadas por algum espírito encostado no doente”. Não admitimos a grande parte e mesmo a maioria das doenças.

Nenhum espírita seria tão leviano, para dizer uma bobagem dessas. O que é do espírito é curado com o Espiritismo e o que é da matéria fica na responsabilidade do barro da terra. Os espíritos maléficos ou trevosos que agem sobre os doentes, passam por doutrinações cristãs, antes de abandonarem o doente. Trata-se de um belíssimo trabalho, que o Clero deveria aprender a fim de aliviar o sofrimento de milhares dos seus adeptos.

Há muita coisa neste mundo que está sendo desvendada e esclarecida pelas entidades do Astral Superior. V. Excelência é bastante culto para reconhecer isto. Entretanto, a rigidez da Lei Canônica, faz manter o povo católico em uma ignorância arcaica, sob a ameaça do inferno. Os filhos de Deus, que procuram seguir a orientação imposta pela evolução revolucionária dos tempos modernos, são considerados loucos, pelo Clero. Por toda a parte se vê isto. É de se estranhar que a vossa Santa Madre Igreja, nos venha taxar de macumbeiros?

Diz V. Excelência, que muitos doentes ficam sem tratamento adequado, perdem o tempo e veem seus males agravados, muitas vezes irremediavelmente, com pseudotratamento dos terreiros e dos despachos.

Não, Excelência. A Umbanda não pode ser responsabilizada por isso. A Umbanda é a vida, é o desprendimento, é o sossego espiritual.

Vós sabeis como é difícil a um pobre chefe de família numerosa, nos dias de hoje, buscar os recursos financeiros para a sua subsistência. Uma consulta médica e compra dos medicamentos são proibidos até para a classe média. Isto é doloroso e vexatório para nós, mas é verdade. Na nossa Santa Casa de Misericórdia, não há vagas para doentes. Está superlotada e, as filas de cristãos, são grandes, aguardando a vez do socorro.

Não me recordo nos meus 55 anos de idade, haver assistido a uma espontânea campanha do Clero, em benefício dos pobres hospitais de caridade. Doando àquelas instituições, um pouco do muito que lhe sobra.

As Igrejas, monumentos católicos, que se constroem nesse imenso Brasil, demoram dezenas de anos nas construções. Falta de dinheiro? Não Excelência, trata-se de um plano pré-traçado para dar motivos às eternas campanhas monstro, de arrecadação de fundos. Em cada rua há uma comissão do Clero para pedir dinheiro. Por que não canalizam um pouco dessa fortuna para o Lar do Amigo Germano, para o Instituto Dias da Cruz, para o Instituto Santa Luzia e para a Casa da Mãe Solteira? O Hospital Espírita de Teresópolis, também luta com sérias dificuldades. Uma infinidade de instituições precisa da sua ajuda. A Bandeira do Divino vai a todas as portas portalegrenses. São muitas mil casas e muitos milhões de cruzeiros encaminhados a uma Igreja milionária.

Consoante a esse tópico, o mundo católico está sobejamente esclarecido.

Continuando, nós umbandistas lamentamos profundamente o triste problema da invalidez, da mendicância, dos parcos recursos das famílias numerosas, das classes médias e pobres. A despeito de tudo isso, temos o orgulho de dizer ao mundo, da influência consagradora, que vem despertando o espiritualismo na vida social da humanidade. Não se trata de conceito meu. Os grandes intelectuais, em todos os ramos da ciência, estudam e aplicam esta nova e revolucionária doutrina; dela fazendo uso às conquistas mais soberbas que se tem notícia sobre a face da terra. As livrarias vendem livros espiritualistas, na proporção de 20 sobre um, das obras editadas pelo Clero, ou por escritores desse culto. Este fenômeno é consequência da guerra implacável e surda que a Igreja desencadeia contra a nossa religião-ciência. É evidente, e mesmo razoável, que a curiosidade desperta o interesse. Daí o grande consumo de obras espiritualistas e a considerável afluência de pessoas aos centros kardecistas e aos terreiros de Umbanda.

Ultimamente, o povo vem se revelando possuir apurado gosto, consequência lógica do seu desenvolvimento intelectual.

  1. Excelência, diz que a nossa população padece de dois tremendos flagelos que são o analfabetismo e a falta de assistência médica. V. Excelência, não devia ter escrito isto, porque a manutenção da Igreja é exatamente pela ignorância de muita gente, considerando-se assim uma das grandes potências de muitos países do globo. O Brasil é um deles.

O desenvolvimento do espírito é exatamente o melhoramento do grau de alfabetização. V. Excelência sabe que o Rio Grande do Sul é o Estado de maior índice de alfabetização do Brasil? Pois é. Temos somente 26% de analfabetos. As nossas autoridades estaduais e municipais, estão criando escolas de grau primário, em todos os recantos do seu território. Há até um plano revolucionário em plena execução, criando uma escola em um raio de três em três quilômetros. V. Excelência sabe que isto é um desastre para o Clero? Quanto mais gente sabida, menos católicos e mais umbandistas. A menos que venha de lá do estrangeiro, uma encíclica determinando aos católicos, um ajuste harmonioso com os espíritas.

Em outras palestras que tenho tido a ocasião de fazer, já profetizei a entrada da Umbanda nos Templos católicos ou vice-versa, em um prazo não distante dos vinte aos trinta anos. No entanto, se isto não acontecer, muito dinheiro será careado do estrangeiro para vir manter as despesas da Igreja. Há uma coisa muito interessante que lembrei agora, que vem corroborar com o meu ponto de vista. A Igreja já se encontra em sérias dificuldades para conseguir jovens para a formação eclesiástica. Isto é um mau prenúncio, não é verdade Excelência? Em todo o caso este é um assunto por demais complexo para discutirmos nesta carta.

A catequese umbandista estabeleceu no espírito do homem o equilíbrio do bom senso, pelas provas insofismáveis das demonstrações, que nos revelam os Luminares do Astral Superior, assistentes dos trabalhos em nossas Tendas. V. Excelência não ignora que esta nossa conversa não contraria os nossos Luminares? Entretanto, nós umbandistas não somos culpados. Somos obrigados a responder para melhor esclarecimento.

Muito humildemente, vos releio alguns versículos do Sermão da Montanha, que nos ensinam a amar e a respeitar aos nossos semelhantes.

 

“18” Porque em verdade eu vos digo que, até que o céu e a terra passem, nem um jota ou um til se omitirá da lei, sem que tudo seja cumprido.

“19” Qualquer,  pois que violar um destes menores mandamentos, e assim ensinar aos homens, será chamado o menor no reino dos céus; aquele, porém, que os cumprir e ensinar será chamado grande no reino do céus.

“22” Eu, porém, vos digo que qualquer que, sem motivo se encolerizar contra seu irmão, será réu de juízo; e qualquer que disser a seu irmão: Raca, será réu do Sinédrio: Louco, será réu do fogo do inferno.

“24” Deixai ali diante do altar a tua oferta e vai reconciliar-te primeiro com o teu irmão e depois vem e apresenta a tua oferta.

“25” Concilia-te depressa com o teu adversário enquanto estás no caminho com ele, para que não aconteça que o adversário te entregue ao juiz, e o juiz te entregue ao oficial a que te encerre na prisão.

“26” Em verdade te digo que de maneira nenhuma sairás dali enquanto não pagares o último ceitil.

“29” Não ajunteis tesouros na terra, onde a traça e a ferrugem tudo consomem e onde os ladrões minam e roubam.

“30” Mas ajuntai tesouros no Céu, onde nem a traça nem a ferrugem consomem e onde os ladrões não minam nem roubam.

Isto não é uma advertência que eu estou fazendo a V. Excelência. Sei que não tenho competência para isso. Entretanto, muitos sábios se emaranharam nos seus ideais filosóficos, por não haverem compreendido ou aceitado as Leis do Mestre.

 

Salve OGUM, o Cavaleiro da Luz.

 

 

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