Vamos Ler! n. 426, 28 de setembro de 1944

Todos os povos criam suas religiões à altura do seu estado cultural. O negro africano, de civilização primitiva, encontrou nos seus fetiches e mandingas a forma religiosa que melhor se adaptava à ignorância em que vivia. Mas, mesmo primitivíssima, essa religião é, como todas as outras, baseada em princípios aprimorantes. A prova está em que não foi condenada pelos jesuítas quando iniciaram a catequese no Brasil. Com habilidade e inteligência, os missionários católicos procuraram estabelecer uma conjugação entre a forma rudimentar religiosa do índio e do negro com o catolicismo. Assim, ligaram o crucifixo a Zambi ou Nzambi, deus maior dos africanos, que recebia várias outras denominações ente as inúmeras tribos negras que para aqui vieram. Os pretos passaram a usar o crucifixo ao pescoço como “iteque”, ou melhor, talismã.

Aliás, essa adaptação é constatada na grandiosa obra de José de Anchieta, nas primeiras festas do Brasil-Colônia, nas coroações dos reis negros, nas congadas e taleras.

Da grande massa negra entrada no Brasil, as levas chegadas ao Rio de Janeiro eram constituídas de tipos mais feios, ignorantes e atrasados – os bantos. Eles nos trouxeram as macumbas, ritual fetichista paupérrimo. Como os bantos vieram em menor proporção e eram inferiores, absorveram muito da religião dos yorubás e dos malês da Bahia, conservando apenas os traços fortes do culto original. O ritual dos negros do Rio está preso aos mortos – animismo – daí a ligação com o espiritismo, aos animais – totemismo e o mais perigoso: a medicina mágica. Do culto fetichista conservaram a adoração das pedras e da luz, sob a materialização do girassol, tão empregado nos préstitos carnavalescos dos ranchos e escolas de samba.

Oxalá ou Zambi é o deus maior nas macumbas cariocas. Não confundir com Zumbi, maléfico espírito das trevas. Os orixás correspondem aos santos, são numerosos. Tantos, que quase sempre “baixam”, “descem” ou “incorporam” em grupos ou falanges e pertencem a várias “nações” ou “linhas”. O grande sacerdote, o “pai de santo”, chama-se também “embanda” ou “umbanda”. O acólito, sacristão, ajudante de cerimônias, é o “cambone” ou “cambono”. Os que, encarnam os espíritos são os médiuns, filhos de santo, aparelho ou cavalo. Não é de estranhar a interpretação da religião negra pelas religiões superiores como o catolicismo e o espiritismo. Não existe religião pura, todas elas se prendem aos cultos mais antigos, primitivos. A religião negra do Rio apresenta, em similitude com os santos católicos, os seguintes orixás:

 

Oxalá – Jesus

Ogum – São Jorge

Xangô – São Jerônimo

Oxóssi – São Sebastião

Iemanjá – Nossa Senhora da Conceição

Exu – Satan, diabo, espírito maligno

Aguará – Santo Onofre

Ibeji – São Cosme e São Damião

Nanamburucú – Nossa Senhora do Rosário

Iansan – Santa Bárbara

Oxum – Nossa Senhora da Aparecida

 

O lugar onde se realiza a macumba toma o nome de congá ou terreiro, seja no chão batido dos caminhos e encruzilhadas ou no assoalho dos compartimentos onde está armado o pegi, altar ornado com flores e fetiches que materializam os orixás. Sobre o pegi devem permanecer as guias, colares de contas coloridas, pontos de firmeza que os chefes ou guias de linhas entregam aos aparelhos. As contas podem ser de vidro, de madeira ou sementes. Para cada linha há uma guia característica. Assim para a linha de Ogum as contas são três encarnadas, duas vermelhas, três brancas e uma azul e, para a de Iemanjá, três brancas, três verdes, três douradas e uma azul. Todas as guias devem ter, no mínimo, 52 contas e, no máximo, noventa e nove. Há objetos e utensílios indispensáveis à cerimônia – citemos a pemba branca – espécie de giz que vem da África, pemba de várias cores, ponteiros ou punhais de aço, coités, invólucro de coco cortado ao meio e polido, moringas de barro, velas, fitas e cadarços das cores do arco íris, barbantes, otás ou pedras de rio, conchas, defumadores de toda a espécie, bodoques, flechas, capacetes de penas, charutos, fósforos, pólvora, plantas e raízes.

Durante a cerimônia tiram-se pontos cantados ao ritmo de tambores, caxambus, batus, catecás, tantãs e chocalhos. Esses pontos são firmados com pemba, recobertos com pólvora, à qual se ateia fogo no momento máximo da solenidade. Há vários pontos tradicionais característicos desse ou daquele orixá. O mais comum é o signo de Salomão ou ainda signo salmão ou ainda signo saimão, constituído por dois triângulos entrelaçados em forma de estrela. Os pontos, tais como os brasões, as insígnias de nobreza, os escudos de armas, encerram a história e os preceitos dos orixás. Os velhos embandas africanos como os conhecedores da heráldica, sabiam decifrar os traços, estrelas curvas e entrelaçamentos dos pontos que traçavam.

Durante as macumbas, muitas vezes preparam-se comidas, nas quais prevalecem o fubá de milho, o azeite de dendê e a pimenta. As bebidas preferidas são cerveja branca ou beja, cerveja preta chamada mijo de porco, parati ou marafa, água ou mazá, aluá, bebida feita com milho verde, mel de abelha e vinho tinto e branco. Os trabalhos são sempre iniciados no último quartel da noite ou às vinte e quatro horas precisamente. Os crentes devem permanecer descalços sobre a terra nua. Os melhores dias para os trabalhos da macumba são segunda e sexta feira.

A cerimônia e a duração dependem da imaginação do macumbeiro – não há um ritual pré-estabelecido. Nela, sob a sugestão dos ritmos, cantigas e passes cabalísticos, desenvolve-se, no impressionismo dos assistentes, cenas e lances que, partindo da supraexcitação, chegam à loucura.

Todos os orixás são festejados nos dias dos santos católicos a que correspondem. Ontem, 27 de setembro, dia de São Cosme e Damião, as macumbas cariocas festejaram Ibeji, os gêmeos, os “dois dois”, como são conhecidos pelo povo. Desde agosto que, pelas ruas dos bairros e subúrbios da nossa cidade, andam mulheres e crianças munidas de bandejas forradas com panos de crochê enfeitadas com flores de papel, sobre as quais descansa a imagem conjugada de São Cosme e Damião, que foram, respectivamente, médico e cirurgião, ambos mártires da Igreja. Os milagres atribuídos à intervenção dos gêmeos árabes são notáveis. Bastava que tocassem com as mãos para que os doentes ficassem curados. É crença popular que, onde há Cosme e Damião, não entra epidemia, malefício e feitiçaria.

Cosme e Damião

Vamos Ler!, n. 426, 28 de setembro de 1944

 

Ponto riscado de Ibeji

Vamos Ler!, n. 426, 28 de setembro de 1944

 

Na religião negra, Cosme e Damião são os protetores das crianças, principalmente dos gêmeos. Nesse dia, as macumbas enchem-se de crentes, recebem dádivas e doces a granel. São presentes dos que ali vão render homenagens aos seus orixás e protetores. O interessante é que há muito marmanjo e velhota sabida que, para poderem gozar sem peias as delícias das guloseimas, encarnam durante a festança apenas espíritos de crianças e, como se tal fossem, falam em tatibitabi (Uma forma de fala caracterizada pela articulação defeituosa de certas consoantes), pulam, fazem travessuras – e atiram-se, vorazmente, aos doces e salgadinhos, como garotos mal educados. Não resta dúvida que o que prejudica as boas intenções é a especulação.

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