Nas décadas de 1940, 1950 e 1960, as perseguições policiais e da Igreja Católicas sobre a Umbanda eram muito cruéis. O Cardeal Dom Jaime Câmara não media esforços para denegrir a imagem da nossa religião. No entanto, alguns umbandistas enfrentavam os sacerdotes de preto com honra e valentia. O que mais se destacou nesse sentido foi o famoso Capitão José Alvares Pessoa, médium preparado pelo Caboclo das Sete Encruzilhadas e dirigente de uma das Sete Tendas Mestras: A Tenda Espírita São Jerônimo. Apresentamos uma de suas muitas matérias publicadas no jornal O Semanário.

 O CARDEAL DECLAROU GUERRA À IEMANJÁ

 O Semanário, 07/02/1957, n. 45

 Publicamos na nossa edição de 17 de janeiro a carta aberta que o Senhor José Alvares Pessoa, presidente da Tenda Espírita São Jerônimo, endereçou ao Cardeal Dom Jaime Câmara, em resposta a palavras proferidas pelo Arcebispo do Rio de Janeiro no programa radiofônico A Voz do Pastor, sobre a homenagem prestada a Iemanjá pelos umbandistas cariocas, na noite de 31 de dezembro.

Desta capital e outros pontos do país, recebemos numerosos pedidos de remessa de exemplares da referida edição, subscrita por pessoas interessadas na leitura deste documento. Impossibilitados de atendê-los, por se haver esgotado completamente a nossa edição de 17 de janeiro, mas desejamos, ao mesmo tempo, de satisfazer á solicitação dos nossos missivistas, reproduzimos hoje, o texto integral da carta do presidente da Tenda São Jerônimo ao Cardeal Jaime.

Carta aberta do Presidente da Tenda Espírita São Jerônimo ao Cardeal Dom Jaime Câmara

Tenho em minhas mãos o recorte de O Jornal, de cinco do corrente, que transcreve alocução do Cardeal Dom Jaime Câmara, no programa A Voz do Pastor, na qual este padre da Igreja Católica adverte às autoridades policiais do Rio de Janeiro, a que nós, umbandistas, prestamos nas praias à divina Yemanjá, na noite de 31 de dezembro, que lhe é tradicionalmente consagrada, e incita-as ao desrespeito à Constituição, que garante a liberdade de cultos.

A vista de tão grave acontecimento resolvi dirigir ao Cardeal Câmara algumas palavras de protesto contra a clamorosa injustiça que cometeu contra as nossas autoridades, sempre tão ciosas no cumprimento do seu dever e não “displicentes e inoperantes”, como as classificou; contra as falsidades que se contem na informação que lhe prestaram sobre a realização das brilhantíssimas homenagens a Yemanjá; e também de advertência.

Diz o Cardeal Câmara:

“Testemunhas oculares nos afirmaram que o tal “culto” a Yemanjá provocou muita embriaguez. Até meninas de 12 anos tomaram parte em grupos que passavam copos de cachaça de boca em boca, além de, com tão pouca idade, fumarem grandes charutos que as deixavam tontas. Que em tais condições, caíssem em transe… quem admira?”

O trecho demonstra: 1o) absoluta ignorância do ritual umbandista nas festas de Yemanjá e, portanto, falsidade do informante; 2o),uma perspicácia de má fé do Cardeal Câmara que taxativamente declarou que as meninas que tomaram parte nos festejos tinham 12 anos. Que precisão!

Quanto ao primeiro ponto: no ritual de Umbanda, quando se festeja Yemanjá, que para nós representa a Energia Divina, só se usa água do mar (que ninguém bebe) e champanhe, que se derrama em homenagem à divindade. Não há bebidas, nem comidas, nas festas de Yemanjá, Cardeal Câmara, e o seu informante não tem a mínima capacidade de observação ou é de uma má fé total. Tem olhos e não sabe ver.

Segundo: nas sessões de Umbanda, não é permitida a entrada de menores. Se algumas meninas de 12 anos compareceram às praias na noite de 31 de dezembro, os umbandistas nada tem a ver com isso, sendo responsáveis apenas os pais das referidas menores.

Essas meninas fumavam grandes charutos, ficavam tontas e caiam em transe, diz o Cardeal Câmara, compungido. Esta declaração faz rir qualquer umbandista. Nenhum médium em Umbanda, e entre eles não há menores de 18 anos, fuma antes de cair em transe. Só quando se está em transe é que se fuma em Umbanda, Cardeal Câmara. É um fenômeno admirável – homens e mulheres que no seu natural tem horror ao fumo, em transe fumam vários charutos sem que por eles sejam afetados!

Vejam só quanta informação falsa e tendenciosa…

Reconheço Cardeal Câmara, que há um motivo, que deve ser dolorosíssimo, para tanto despeito. Pela terceira vez, em três anos seguidos, os padres da Igreja de Roma tentaram esmaecer o brilho dos festejos de Yemanjá na noite de 31 de dezembro, procurando, por meio de uma inovação provocatória e desleal, realizar missas e procissões à mesma hora em que realizamos o nosso tradicional ritual. Não é da tradição da Igreja Católica, nem nunca foi e o Cardeal Câmara não poderá provar em contrário, rezar missas e fazer procissões na noite de 31 de dezembro. Para castigo do Cardeal e por milagre de Yemanjá, as missas e as procissões tentadas três vezes, nesses últimos três anos, não tiveram o mínimo êxito, como é de domínio publico.

Agora, vamos à advertência que quero fazer e faço ao Cardeal Câmara:

Diz o Eclesiastes que “aquele que transporta pedras será maltratado por elas” (Ec. X. 9)

Não procure, por qualquer meio, Cardeal Câmara, acender uma luta religiosa no Brasil. O senhor e os seus subordinados só terão a perder com isso. Não é nenhuma novidade que os senhores da Igreja de Roma perdem terreno, dia a dia. E o perdem por inércia, por ganância, por orgulho, por falta de caridade e de sentimento cristão.

O povo de hoje, apesar de ainda ser muito pouco alfabetizado, tem uma rara acuidade, observa tudo e tira conclusões lógicas de muita coisa. Está cansado de ser explorado pela Santa Madre Igreja, que não dá nada e leva o que pode. Os padres da Igreja não realizam um só sacramento de graça. Se o pobre tiver dinheiro, os seus filhos serão batizados, suas filhas casarão na Igreja, os seus defuntos terão a encomendação da alma, etc. Mas se o dinheirinho tão magro que nem dá para o sustento de cada dia, não aparecer, que o menino morra pagão, que a mocinha se amasie e que o defunto… vá para o inferno! É esta a prática diária da igreja.

Cardeal Câmara, enquanto o senhor veste púrpura cardinalícia, que custa milhares de cruzeiros, e celebra o ritual da Igreja com paramento de riquíssimas rendas e brocados de ouro, com os pés bem calçados em sapatos feitos à mão, gastando na pompa ritualística e no seu bem estar pessoal dinheiro que encheria a barriga de milhares de representantes da “gentinha” (como o senhor classifica os brasileiros humildes na sua A Voz do Pastor), essa mesma “gentinha” e mais os grã-finos que andam de Cadillac cansados todos de abrir a bolsa para saciar a voracidade dos padres católicos, recorrem sofregamente aos terreiros de Umbanda, onde se pratica a pura e verdadeira caridade cristã, de graça, como nos tempos de Pedro e Paulo. Porque Cardeal Câmara, nas humildes Tendas de Umbanda, todos os que buscam alivio para os seus males espirituais, morais e materiais, são atendidos, sem pagar um vintém, por abnegadas criaturas, que vivem do seu trabalho honesto e que, abdicando do direito que tem de descansar, ficam noite a fio trabalhando pela felicidade dos seus semelhantes.

Não pense Cardeal Câmara, que as suas palavras no programa A Voz do Pastor poderão desmoralizar a Umbanda. As suas palavras, que não tem mais eco talvez, tivessem tido algum resultado há 40 anos passados. Mas, hoje quando milhares e milhares de pessoas (e entre essas se contam católicos aos milhares) acorrem diariamente às Tendas umbandistas, e ali são recebidas, sem se levar em conta a que religião pertencem, se tem ou não dinheiro, se são ou não “gentinha”, se andam ou não de Cadillac, e ali são atendidas uma a uma com a maior paciência e caridade cristã, as suas palavras são como as sementes daquele semeador, de que falava o doce Nazareno, que caíram ao longo do caminho e vieram as aves do Céu e comeram-nas. Não são levadas em conta, porque todos os que conhecem a Umbanda (são centenas de milhares) sabem que não representam a verdade.

O povo, Cardeal Câmara – e por povo quero dizer o grã-fino e a “gentinha” de que o senhor fala – está sofrendo e todo aquele que sofre procura o lugar onde sabe que receberá o alivio e o conforto. A Igreja Católica – que é essencialmente política e de que espiritual só tem a fama – não conforta nem dá alivio a ninguém. É tirânica, ávida de poder temporal, avarenta, acumuladora de tesouros que não reparte com os pobres. Não segue, há muitos séculos, os ensinamentos do Cristo, tão doce, tão humilde, com seus pés descalços e a sua roupa de pano grosseiro. A Igreja perde pé dia a dia e fatalmente sossobrará.

Esta é a advertência que desejei fazer-lhe e que lhe faço, Cardeal Câmara, pedindo ao doce Nazareno, a quem tanto amo, que faça descer a sua paz sobre seu espírito conturbado.

José Alvares Pessoa
Presidente da Tenda Espírita São Jerônimo

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