MEMÓRIAS DA UMBANDA

 

Diamantino Fernandes Trindade

 

FRANCISCO GUIMARÃES – O VAGALUME

Francisco Guimarães, também conhecido como O Vagalume, foi um famoso repórter do Rio de Janeiro. Nasceu, no Rio de Janeiro, em 1877 e vinha de uma família de trabalhadores negros. Foi auxiliar de trem da Estrada de Ferro Pedro II, atual Central do Brasil, onde começou suas atividades de jornalista, comentando os fatos ocorridos nas linhas. Trabalhou na Tribuna, Crítica e Jornal do Brasil. Além de jornalista foi dramaturgo, um dos cronistas mais populares de sua época na então capital do país, reconhecido por sua obra pioneira Na Roda do Samba. Foi o primeiro a retratar o carnaval nos jornais cariocas.

Na Roda do Samba foi publicado em 1933 pela Tipografia São Benedito e contava a história do ritmo e fazendo o registro de seus principais compositores e maiores intérpretes. Faleceu, no Rio de Janeiro em nove de janeiro de 1949.  

Francisco Guimarães, o Vagalume

Juliana Barreto Farias (Mistérios da Mandinga – As crônicas de Vagalume e as “Religiões Africanas” no Rio de Janeiro da Primeira República. In: Religiões Negras no Brasil. Valéria Costa e Flávio Gomes (orgs.). São Paulo: Selo Negro, 2016.) cita:

Na última página da edição de 12 de janeiro de 1929, em meio às alarmantes notícias sobre o “verdadeiro dilúvio” que desabara sobre a cidade do Rio de Janeiro, os redatores do jornal Crítica anunciavam: no dia seguinte, dariam início à publicação de uma reportagem sensacional, de aspectos curiosíssimos, sobre mistérios da mandinga. Dalí até o dia 25 daquele mês, 11 artigos descortinariam a “religião africana”, com seus pais de santo, alufás (líderes muçulmanos) e feiticeiros; candomblés, despachos e ebós; enfim, uma vida de estranho fetichismo no Rio, envolvendo personalidades de grande prestígio político, social e mesmo intelectual.

Demonstrando muita intimidade com aquele universo, o redator do inquérito sobre os “mistérios da mandinga” descrevia – com boas doses de admiração e também de ironia – visitas a casas e terreiros de líderes religiosos afamados.

O tratamento diferenciado que a “religião africana” ganhava nas páginas do Crítica tinha, pelo menos, uma explicação: o autor daquelas linhas. Como vinha destacado logo na abertura da série, o repórter Francisco Guimarães, o popular Vagalume, era o redator dos sobre o “mundo dos fetiches”.

Mostramos a seguir um texto do Vagalume publicado no jornal Crítica que cita a CARAVANA NEGRA DE D. PEDRO I.

OS MISTÉRIOS DA MANDINGA

Francisco Guimarães

Critica, n. 47, 13 de janeiro de 1929

O mundo está envolto no manto do fictismo. Tudo é falso na terra, desde a própria terra de onde sai o homem, até o homem reverter a terra.

Tudo é ficção.

Deus quando criou o mundo, instituiu a falsidade, a mentira e a traição, que se desdobraram na hipocrisia, na maldade e na ingratidão.

Não há nada perfeito no mundo, senão o próprio Deus.

Os primeiros exemplos da falsidade e traição, tivemo-los em Adão e Eva, que expulsos do Paraiso, receberam o castigo para exemplo da humanidade. Daí para cá, vivemos neste vai e vem de lágrimas, na luta do pão nosso de cada dia, desejando cada um para si o melhor quinhão.

E nesta luta, que armas são empregadas? A falsidade, a mentira e a ingratidão.

Depois de Adão e Eva, tivemos o grande exemplo de Judas por 30 dinheiros após comer o pão que era o seu corpo e beber o vinho que era o seu sangue! Foi o discípulo ingrato, invejoso e traidor.

E o que vemos então diariamente? A repetição dos mesmos casos, muito espírito religioso, alimentado pela fé mais acrisolada, que cometem um pecado e que o pecado é passível de pena dentro dos Mandamentos da Lei de Deus.

Entretanto, diariamente, de hora em hora, de minuto em minuto, de segundo em segundo aumenta o número de pecadores e por quê? Porque é também da Santa Doutrina, que Deus tudo perdoa, sem que nos lembremos de que em um dos mandamentos ordena castigar os que erram.

E vivemos assim e assim havemos de continuar até o dia do juízo.

O mundo é um incorrigível muito grande, que nunca mais se endireitará, porque já foi criado torto.

Todos nós somos indesejáveis dominados por uma ambição incontida.

É a ambição do ouro, do poder, do mando e da mulher do próximo.

Ninguém se contenta com aquilo que Deus lhe deu: quem tem pouco, quer muito e quem tem muito quer mais.

E para chegar à finalidade das suas anotações, ninguém mede esforços nem sacrifícios.

Eis de onde se originou a exploração da credulidade pública, que a lei dos homens pune, em nome da sociedade.

Ide ao Japão. Lá encontrareis um milhão de seitas com outro tanto de adeptos perfeitamente congregados.

Ide à Índia e à África e vereis o que é fanatismo.

O Brasil, país novo, vem recebendo os eflúvios daqueles sectários que representam as tradições dos nossos antepassados.

A África nos mandou os primitivos feiticeiros que trabalhavam para o bem e para o mal.

Desta época em diante, a mandinga começou a ter grande desenvolvimento no Brasil inteiro e começaram a proliferar os quimbandeiros, os mandingueiros, que foram cedendo lugar aos pais de santo, ao alufás e aos falsos espíritas que exploram com a grande ciência de Allan Kardec, que, aliás, é coisa muito diversa, como teremos oportunidade de provar exuberantemente.

A verdade, porém, é que tudo isto está por aí germinado e espalhado de um modo tal, que é interessante conhecer alguns detalhes, embora ligeiramente, com a revelação de casos e causas.

A Caravana Negra

 

O feitiço, não é, como muita gente pensa, original da África.

Os egípcios já o praticavam, chegando até a denomina-lo “a arte sagrada”.

Remonta de muito antes do século IX, florescendo na Idade Média, para tomar maior desenvolvimento no século XVIII, sendo incontestavelmente os árabes os seus precursores.

No Brasil, porém, devemos aos africanos o enraizamento do feitiço, datando o seu início de 1820.

D. Pedro I chamou a si a primazia de tudo: foi o nosso primeiro Imperador, o nosso primeiro mandingueiro!

Os últimos anos do seu império correram agitadíssimos e sua Majestade via a cada momento a queda da dinastia. Era preciso impedi-la fosse como fosse, e principalmente dominar o entusiasmo que ia pelos quartéis do Sul ao Norte. Foi então quando D. Pedro I mandou vir da América um numeroso grupo de feiticeiros, que afinal chegou como presente régio, para não dar a perceber.

Os homens entraram em ação e chegaram mesmo a impedir o assassinato de S. M. que apesar de ciente da eficiência dos trabalhos daqueles homens, os mandava castigar e barbaramente quando o resultado não era imediato.

Com a mesma facilidade com que mandava recarimbar as moedas de cobre, alterando-lhe o valor – de 20 para 40 e de 40 para 80 réis, mandava meter no tronco um dos seus babalaôs quando falhava o bote em qualquer dama que lhe caísse na graça.

Aquelas cólicas que tanto o importunaram em sete de setembro de 1822, eram o início de uma vingança de um dos membros da caravana negra!

Supersticioso em excesso, D. Pedro I usava e abusava do feitiço, sendo que nem todos poderiam produzir o efeito desejado, porque os despachos não eram feitos pela pessoa, ainda mais se abandonou seu ori e desinteressada.

O nosso primeiro Imperador jazia filho de Ogum.

Quando reunia o Conselho da Mandinga, intitulava-se “Omancheo” (Discípulo de Alikali – Juiz).

O seu trabalho predileto, para castigar políticos, era o “ojó” que faz enlouquecer.

Contam que certa vez Sua Majestade chamou o babalaô de semana e ordenou:

– Seja como for a baronesa de… Tem que vir ao meu beija mão.

O preto africano consultou o Ifá e declarou ao Imperador que o trabalho era difícil, mas seria feito.

O soberano sorriu e perguntou:

– Quantos dias?

Sete dia difitiço, oito dia ela está aí.

– Oito dias?

Sim meu sinhô. Eu chama a egun e depois!

– E depois terás a recompensa. Tens à disposição o que for necessário.

Dentro de três dias a bela e encantadora baronesa era recebida em audiência especial – nos aposentos particulares de Sua Majestade o Imperador.

O preto Olouo-Oié foi elevado, dentre os 50 da Caravana Negra de D. Pedro I, o cargo de ládamo.

Quando o Imperador teve conhecimento de que no Rio Grande do Sul, nas províncias Cisplatinas, na Bahia, em Pernambuco e em São Paulo se conspirava abertamente, dividia os babalaôs por toda a parte.

Em verdade, D. Pedro I não gozava da menor simpatia daquela gente, a quem maltratava, castigava, quando não satisfeito nos seus desejos e se queria impor como Imperador, como Soberano, quando perante eles, deveria ser sempre um crente dócil e obediente e principalmente, todas as vezes que cogitasse de preparar um ebó.

Livres da opressão, do tronco e do vergalho, os membros da Caravana Negra, combinaram previamente, e, cada um do seu lado, começou a ser feito o trabalho contra D. Pedro I, mas, lentamente, afim de que Sua Majestade não pudesse desconfiar, o que neste caso lhes poria a cabeça em risco.

Quando a situação foi se agravando por aqui, o Imperador lembrou-se tardiamente de reunir a Caravana Negra, para uma ação conjunta.

Muitos já haviam desertado, outros falecido, de modo que o “vigário geral” Olouo-Oié, muito velho e cansado, rodeado de outros tantos nas suas condições, já não tinha força para a execução de trabalhos que exigiam muita agilidade e grande atividade.

E foi assim que D. Pedro I viu apagar-se o farol, percebeu que a sua estrela perdera o brilho e inesperadamente, resolveu abdicar em sete de abril de 1831.

 

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